segunda-feira, 8 de março de 2010

1° de janeiro de 2040: Um quase-conto de Natal

Mar da Galiléia (Foto do Autor- 2009)

“Hoje, o dia amanheceu com um brilho diferente. Aqui no norte, os dias são sempre muito brilhantes, chega a doer nos olhos, mas hoje os tons da vegetação, a paisagem, o horizonte, a água do mar, tudo está mais nítido, mais intenso, mais tridimensional. Consigo perceber nuances sutis, como há muito tempo deixei de ver, mesmo com o auxílio dos fantásticos óculos hiperespectrais de última geração. Estou gostando, essa sensação visual está me fazendo bem; acho que não vou tomar nenhum remédio hoje.

Como de costume, estou na varanda aberta para a placidez das águas e dos morros cultivados. Sinto-me tão bem aqui, foi a melhor coisa que fizemos quando decidimos nos mudar para cá, alguns anos atrás. Téia, minha mulher, relutou um pouco, queria ficar próxima dos bisnetos, mas aceitou depois de assinarmos o plano de viagens mensais, o que nos permite passar uns dias por mês com eles, em qualquer parte do mundo. Aqui, os idosos da Quarta Idade têm muitos benefícios. E nós já estamos no meio dessa nova etapa da vida. Pode não ser a melhor, mas, seguramente, é muito divertida também. Somos imensamente felizes. Vivemos num ambiente de muita paz. As pendengas políticas do Oriente Médio foram definitivamente resolvidas na última década e paira no ar um clima de concórdia e cooperação entre os países limítrofes.

Embora estejamos morando sozinhos aqui, esses incríveis meios de comunicação atuais nos permitem falar e ver as pessoas no meio da sala, com uma nitidez incomparável. Fico sempre extasiado com tais tecnologias, confrontadas com as usadas em 2010, por exemplo. Os bisnetos acham muito engraçado quando falo das coisas de 2010, mas esse foi um ano que ficou marcado em nossas vidas porque representou a mudança, para melhor, de todos nós. Talvez por isso minhas lembranças retornem a ele com freqüência e gratidão.

Comecei a escrever essa crônica agora num extraordinário computador inteligente, presente de Natal de Gustaf, meu neto. Estou me divertindo muito com essa nova maquininha que não lembra nem de longe os antigos computadores do início do século. Ele gosta de me trazer novidades tecnológicas. Ainda passamos horas conversando sobre todos os assuntos. Sempre tivemos uma empatia muito grande. Estamos aguardando a sua visita. Vai chegar com a esposa hoje à tarde. Eles não puderam vir para o Natal, mas mandaram os filhos para passar uns dias conosco e a casa está em festa com a presença deles. Foram acompanhar a bisavó no seu passeio matinal à beira-mar.

Gustaf sempre foi um jovem brilhante e trabalha agora em projetos gigantescos de recuperação de áreas degradadas no mundo todo. Sua empresa já conseguiu reverter a degradação do Mar Morto, que voltou a ter águas com o mesmo volume e teor dos tempos bíblicos. Uma façanha pela qual recebeu uma comenda da Organização das Nações. Sou um de seus maiores admiradores, perdendo apenas para a avó.

Obviamente, não se pode esquecer a formação dada a ele por seus pais. Estes, depois de aposentados, engajaram-se num projeto internacional para a recuperação de jovens na África. A grande experiência adquirida no Brasil para casos semelhantes levou-os a abraçar essa missão de alta relevância para a pacificação de países menos favorecidos do continente africano. Tenho muito orgulho deles e mantemos estreito relacionamento para ajudá-los a perseverar na causa benemérita.

Hoje é um dia de coincidências porque meu filho mais novo está em missão na África e deve encontrar o irmão e a cunhada. Ele é professor universitário e está no comando do programa de equalização holística de expertises, ou seja, a reunião de pesquisadores de mesmo padrão intelectual e formações diferentes das universidades de todo o mundo. Esse é um grande esforço das nações para o melhor aproveitamento e crescimento holístico de sua elite acadêmica. Vamos vê-los mais à noite pelo novo comunicador holográfico que Gustaf disse estar trazendo. Vai ser divertido.

Lembrei-me hoje também que devo ir ao Brasil no ano que vem. Vou a cada cinco anos para um evento especial: a reunião da turma da faculdade. Imperdível. Somos ainda um considerável número de sobreviventes, bastante capengas, diga-se, mas com o mesmo brilho no olhar dos idos de 1966, quando nos formamos. Ainda escrevo uns versos para a ocasião. Eu os chamo de “cantos senoidais qüinqüenais”. Em 2036 escrevi o “canto senoidal do décimo quarto qüinqüênio”, para comemorar os setenta anos de formatura. Uma marca histórica, sem dúvida.

Nessas viagens, tenho tido a oportunidade de verificar como o Brasil vem melhorando nas últimas décadas. Atualmente, encontra-se entre os cinco países mais desenvolvidos do planeta. E o que mais me alegra é o índice de desenvolvimento humano alcançado. As últimas medições dão conta de que já está em 15° lugar, o mesmo ocupado por Israel em 2010. Não é pouca coisa. Foi preciso um grande esforço da sociedade civil e do governo para se chegar a isso. Incrivelmente, hoje políticos corruptos se suicidam de vergonha quando são pilhados em alguma falcatrua, coisa impensável no início do século.

Vou parar de escrever agora. Devo ter me alongado além da conta nessas memórias. De repente ficou escuro, embora ainda seja dia, e eu sinto um grande cansaço. Vou descansar um pouco. Gustaf já deve estar chegando. Amanhã cedo continuo a escrever”

Encontrei o texto acima inacabado no computador do meu avô. Cheguei há pouco do mar, onde fui depositar suas cinzas, como era seu desejo e nosso pacto desde a minha infância. Ele fez sua travessia, placidamente, aos 99 anos.

Tiberíades, 1° de janeiro de 2040.

Gustaf