O fascínio atávico que o ser humano
sente pelos grandes corpos d’água determinou, ao longo dos tempos, seu modo de
ser, de viver, de trabalhar, de lutar, de rezar e de se divertir. Por ser a
água a essência biológica da vida, o simples ato de vê-la gera nas pessoas um
estado de extremo bem-estar. Nesse exato momento, com certeza milhões de
pessoas, em todo o mundo, estarão pensando numas merecidas férias à beira-mar,
lago, rio, córrego, represa ou, quem sabe, numa piscininha natural no sitio da
vovó.
Agora
mesmo, antes de começar a escrever, estava a olhar absorto para o “papel de
parede” do computador, composto
por
uma foto espetacular de paisagem do Canadá, onde um rio desce em corredeiras
por entre magníficos espécimes coloridos de abetos, pinheiros, espruces e
bálsamos, componentes da densa floresta que recobre aquele notáveis pais do
Norte.
Pois
ao observar essa imagem tão bela, me dei conta do enorme encanto que o Rio
Piracicaba sempre exerceu em mim, desde a infância. Algumas poucas cidades
têm o privilégio de serem cortadas por rios de porte, como a nossa. Uma que se
assemelha bastante é a agradável Cachoeiro de Itapemirim, no estado do
Espírito Santo. É muito provável que esteja aí a causa da atração que Roberto
Carlos sentiu por Piracicaba, tempos atrás, quando possuiu um rancho em
Artemis, onde costumava passear de barco nas águas que deveriam lembrar-lhe
seu pequeno Cachoeiro. A propósito, por onde andará o rei? Em que águas navega
agora?
Lembro-me que na década
de 50 parte significativa de minhas horas de lazer de adolescente foi passada
às margens do Piracicaba. Com meus amigos Ítalo e Tegon, descia da Cidade Alta
para o Clube de Regatas, ondede “Seo" Júlio nos dava as catraias para os
passeios. O maior barato era remar forte até o meio do rio, fazendo a catraia
penetrar na correnteza e rodopiar ao sabor da força das águas. Acho que o lugar se chamava poção, era
extremamente perigoso, onde afogamentos aconteciam com frequência. Mas o sabor
do perigo era inigualável. Hoje, existem esportes radicais certamente bem mais
arriscados do que aquilo, mas para mim era adrenalina pura.
Naquele
tempo o clube ainda não tinha piscina e a gente nadava no rio mesmo, saltando
do trampolim de ferro, localizado à altura da rua Moraes Barros. Nunca me
esqueci do sufoco que passei num dia de cheia, quando, por descuido, afastei-me
mais do que era seguro e vi-me sendo puxado rapidamente para longe do
trampolim, para meu total desespero. Lembro-me com nitidez dos rostos
apreensivos dos colegas distanciando-se. A sensação era que eles fugiam de mim.
Felizmente, Laoviah, meu anjo da guarda, disfarçado num revoluteio da correnteza,
empurrou-me para um remanso e pude nadar de volta. Terminava ali a minha
promissora carreira de nadador fluvial. Naquele ano, o rio cobrou quatro
vidas. Foram meninos e adolescentes que tiveram menos sorte do que eu...
Mas o
rio continuava sendo a grande atração. Lá pelo fim da década de 50, embora sem
muita vontade de me aventurar nas suas águas já bastante turvas, costumava
pescar com meu amigo Olaerte, à jusante do salto, ali onde o peixe para(va). No
início dos anos 60, ele se mandou para os States e eu perdi o companheiro de
pescaria. A minha nova carreira de grande pescador ribeirinho viu-se prejudicada
por falta de equipe. Quando, depois de muitos anos, fui visitá-lo em Salt Lake
City, ao relembrarmos os tempos de juventude, me contou que, uma vez por ano,
ele vai com os amigos pescar no Alaska e nas conversas de pescador das noites
geladas de lá, para rebater a bazófia dos gringos, conta-lhes sobre os grandes
dourados, pintados, mandis, jaús e o imenso lambari, o terror das águas, com
quase cem quilos, que ele costumava pescar em sua terra natal. Pelo visto, ele
continua sendo um autêntico pescador.
Em
1963, na inauguração da sede atual do Centro Acadêmico “Luiz de Queiroz",
eu era diretor artístico e cultural e trouxe o Jorge Mautner e o José Roberto
Aguilar para uma palestra. Mautner tinha lançado o seu polêmico livro “Kaos”
e o Aguilar iniciava sua careira de pintor. Pois junto com os dois, vieram o
Zé Mário e o Leo, cineastas desvairados que adoraram Piracicaba. Sempre que
podiam vinham passar um fim de semana com a gente e ficavam na casa do Tilo
Ferraioli. Numa dessas vezes, lá pelas tantas, depois de umas e outras no Café
Haiti, fomos ao rio curar a bebedeira. Só que o Zé Mário, além de quase surdo,
era quase cego. Quando chegamos onde hoje está a ponte pênsil, ele tropeçou e,
pra variar, perdeu os óculos. De noite, escuro, mais as cervejas tomadas, até
que tentamos, mas não houve jeito de achar os óculos do Zé. Tudo bem, fomos
para a água, noite quente de janeiro, todo mundo pelado, estávamos sentados nas
pedras, na maior, quando chegaram uns caras gritando, perguntando onde estava
a tarrafa e passando a mão sob nossas pernas, procurando a dita cuja. Aí a
coisa pegou. Era a fiscalização que tinha dado uma batida do outro lado do rio
e os verdadeiros infratores tinham fugido para o nosso lado. Como os amigos
eram de São Paulo, nunca tinham ouvido falar em tarrafa. Não entenderam nada.
Foi duro convencer os fiscais que a gente não estava pescando. Mas a cena mais
hilária ficou por conta do Leo tentando explicar ao Zé, aos berros, o que estava
acontecendo. A única coisa que ele tinha percebido era uns vultos gritando e
passando a mão no seu traseiro molhado. Minha impressão é que, até hoje, ele
não entendeu direito o sucedido naquela noite.
Em
outra oportunidade, o amor pelo rio quase me deu cadeia. Tínhamos um jornal
acadêmico, onde escrevi um artigo intitulado "O crime da poluição”.
Era
uma matéria técnica baseada numa entrevista com o Prof. Jardim, da Esalq, sobre
os malefícios das descargas de restilo no rio. Naquele tempo, as usinas eram
construídas à beira dos rios, não só para facilitar a captação de água, mas
também para livrarem-se mais facilmente dos poluentes. O que hoje pode ser
considerada uma nobre preocupação, configurou-se como uma perniciosa
subversão, para a visão tacanha da ditadura advinda do golpe militar de 64. Na
cabecinha deles, só por ser estudante, eu já era suspeito; como diretor de
centro acadêmico, mereci ser fichado no DOPS; por participar de um congresso da
UNE, fui considerado comunista; e por escrever algo denunciando o poder
econômico, tornei-me passível de detenção. Fui indiciado até em um IPM
(inquérito político-militar) por conta disso.
Mas
essa preocupação com o meio ambiente, que me vem acompanhado desde então, foi
despertada quando comecei a ver o meu rio perdendo os seus peixes, suas águas
se tornando turvas e malcheirosas, sendo desviadas sem consulta para abastecer
outras cidades. Sinto uma profunda consternação e revolta por ver que desde
aquela o problema só fez aumentar. Falou-se muito, mas muito pouco se fez de
concreto.
Morei fora por muito anos, mas sempre que
voltava à cidade, depois de ver os parentes, eu ia ver o rio. Era um ritual,
como voltar ao templo da iniciação. Parar às suas margens e ficar olhando as
águas, era como fazer uma prece. Numa dessas vezes, algum tempo atrás, vi o meu
amigo Ítalo, apoiado à amurada em frente ao Regatas, hierático, olhando o rio,
como fazia na juventude. Então ele me disse que aquele era o seu ritual, que
vinha sempre ali e conhecia todas as manifestações do rio: sua alegria nas
cheias e seu sofrimento e agonia na estiagem, causados pela tortura das cargas
poluidoras impiedosas. Despedi-me como um antigo confrade e, em silêncio,
agradeci-lhe por continuar mantendo viva a chama...