sábado, 16 de março de 2019

OS AMIGOS DO RIO



       O fascínio atávico que o ser humano sente pelos grandes cor­pos d’água determinou, ao longo dos tempos, seu modo de ser, de viver, de trabalhar, de lutar, de rezar e de se divertir. Por ser a água a essência bio­lógica da vida, o simples ato de vê-la gera nas pessoas um estado de extre­mo bem-estar. Nesse exato momen­to, com certeza milhões de pessoas, em todo o mundo, estarão pensando numas merecidas férias à beira-mar, lago, rio, córrego, represa ou, quem sabe, numa piscininha natural no sitio da vovó.
Agora mesmo, antes de começar a escrever, estava a olhar absorto pa­ra o “papel de parede” do computador, composto por uma foto espeta­cular de paisagem do Canadá, onde um rio desce em corredeiras por entre magníficos espécimes coloridos de abetos, pinheiros, espruces e bálsamos, componentes da densa floresta que recobre aquele notáveis pais do Norte.
Pois ao observar essa imagem tão bela, me dei conta do enorme encan­to que o Rio Piracicaba sempre exer­ceu em mim, desde a infância. Algu­mas poucas cidades têm o privilégio de serem cortadas por rios de porte, como a nossa. Uma que se asseme­lha bastante é a agradável Cachoeiro de Itapemirim, no estado do Espírito Santo. É muito provável que esteja aí a causa da atração que Roberto Carlos sentiu por Piracicaba, tempos atrás, quando possuiu um rancho em Artemis, onde costumava passear de bar­co nas águas que deveriam lembrar-lhe seu pequeno Cachoeiro. A propósito, por onde andará o rei? Em que águas navega agora?
Lembro-me que na década de 50 parte significativa de minhas horas de lazer de adolescente foi passada às margens do Piracicaba. Com meus amigos Ítalo e Tegon, descia da Cidade Alta para o Clube de Regatas, ondede “Seo" Júlio nos dava as catraias para os passeios. O maior barato era re­mar forte até o meio do rio, fazendo a catraia penetrar na correnteza e rodopiar ao sabor da força das águas.  Acho que o lugar se chamava poção, era extremamente perigoso, onde afo­gamentos aconteciam com frequência. Mas o sabor do perigo era inigua­lável. Hoje, existem esportes radicais certamente bem mais arriscados do que aquilo, mas para mim era adre­nalina pura.
Naquele tempo o clube ainda não tinha piscina e a gente nadava no rio mesmo, saltando do trampolim de fer­ro, localizado à altura da rua Moraes Barros. Nunca me esqueci do sufoco que passei num dia de cheia, quando, por descuido, afastei-me mais do que era seguro e vi-me sendo puxa­do rapidamente para longe do trampolim, para meu total desespero. Lembro-me com nitidez dos rostos apreensivos dos colegas distanciando-se. A sensação era que eles fugiam de mim. Felizmente, Laoviah, meu anjo da guar­da, disfarçado num revoluteio da cor­renteza, empurrou-me para um remanso e pude nadar de volta. Terminava ali a minha promissora carreira de na­dador fluvial. Naquele ano, o rio co­brou quatro vidas. Foram meninos e adolescentes que tiveram menos sor­te do que eu...
Mas o rio continuava sendo a grande atração. Lá pelo fim da década de 50, embora sem muita vontade de me aventurar nas suas águas já bastante turvas, costumava pescar com meu amigo Olaerte, à jusante do salto, ali onde o peixe para(va). No início dos anos 60, ele se mandou para os Sta­tes e eu perdi o companheiro de pes­caria. A minha nova carreira de gran­de pescador ribeirinho viu-se preju­dicada por falta de equipe. Quando, depois de muitos anos, fui visitá-lo em Salt Lake City, ao relembrarmos os tempos de juventude, me contou que, uma vez por ano, ele vai com os amigos pescar no Alaska e nas con­versas de pescador das noites gela­das de lá, para rebater a bazófia dos gringos, conta-lhes sobre os grandes dourados, pintados, mandis, jaús e o imenso lambari, o terror das águas, com quase cem quilos, que ele cos­tumava pescar em sua terra natal. Pelo visto, ele continua sendo um autêntico pescador.
Em 1963, na inauguração da sede atual do Centro Acadêmico “Luiz de Queiroz", eu era diretor artístico e cultural e trouxe o Jorge Mautner e o José Roberto Aguilar para uma pales­tra. Mautner tinha lançado o seu po­lêmico livro “Kaos” e o Aguilar inicia­va sua careira de pintor. Pois junto com os dois, vieram o Zé Mário e o Leo, cineastas desvairados que adoraram Piracicaba. Sempre que podiam vi­nham passar um fim de semana com a gente e ficavam na casa do Tilo Ferraioli. Numa dessas vezes, lá pelas tan­tas, depois de umas e outras no Café Haiti, fomos ao rio curar a bebedei­ra. Só que o Zé Mário, além de quase surdo, era quase cego. Quando che­gamos onde hoje está a ponte pênsil, ele tropeçou e, pra variar, perdeu os óculos. De noite, escuro, mais as cer­vejas tomadas, até que tentamos, mas não houve jeito de achar os óculos do Zé. Tudo bem, fomos para a água, noite quente de janeiro, todo mundo pelado, estávamos sentados nas pe­dras, na maior, quando chegaram uns caras gritando, perguntando onde es­tava a tarrafa e passando a mão sob nossas pernas, procurando a dita cuja. Aí a coisa pegou. Era a fiscalização que tinha dado uma batida do outro lado do rio e os verdadeiros infrato­res tinham fugido para o nosso lado. Como os amigos eram de São Paulo, nunca tinham ouvido falar em tarrafa. Não entenderam nada. Foi duro convencer os fiscais que a gente não estava pescando. Mas a cena mais hi­lária ficou por conta do Leo tentando explicar ao Zé, aos berros, o que estava acontecendo. A única coisa que ele tinha percebido era uns vultos gri­tando e passando a mão no seu traseiro molhado. Minha impressão é que, até hoje, ele não entendeu direito o sucedido naquela noite.
Em outra oportunidade, o amor pelo rio quase me deu cadeia. Tínhamos um jornal acadêmico, onde es­crevi um artigo intitulado "O crime da poluição”.
Era uma matéria técnica baseada numa entrevista com o Prof. Jardim, da Esalq, sobre os malefícios das descargas de restilo no rio. Naquele tempo, as usinas eram construídas à beira dos rios, não só para facilitar a captação de água, mas também pa­ra livrarem-se mais facilmente dos poluentes. O que hoje pode ser consi­derada uma nobre preocupação, configurou-se como uma perniciosa subversão, para a visão tacanha da dita­dura advinda do golpe militar de 64. Na cabecinha deles, só por ser estu­dante, eu já era suspeito; como dire­tor de centro acadêmico, mereci ser fichado no DOPS; por participar de um congresso da UNE, fui considerado comunista; e por escrever algo denunciando o poder econômico, tornei-me passível de detenção. Fui indiciado até em um IPM (inquérito político-militar) por conta disso.
Mas essa preocupação com o meio ambiente, que me vem acompanhado desde então, foi despertada quan­do comecei a ver o meu rio perden­do os seus peixes, suas águas se tor­nando turvas e malcheirosas, sendo desviadas sem consulta para abaste­cer outras cidades. Sinto uma profunda consternação e revolta por ver que desde aquela o problema só fez aumentar. Falou-se muito, mas muito pouco se fez de concreto.
Morei fora por muito anos, mas sempre que voltava à cidade, depois de ver os parentes, eu ia ver o rio. Era um ritual, como voltar ao templo da iniciação. Parar às suas margens e fi­car olhando as águas, era como fazer uma prece. Numa dessas vezes, algum tempo atrás, vi o meu amigo Ítalo, apoiado à amurada em frente ao Regatas, hierático, olhando o rio, como fazia na juventude. Então ele me dis­se que aquele era o seu ritual, que vi­nha sempre ali e conhecia todas as ma­nifestações do rio: sua alegria nas cheias e seu sofrimento e agonia na estiagem, causados pela tortura das cargas poluidoras impiedosas. Despedi-me como um antigo confrade e, em silêncio, agradeci-lhe por conti­nuar mantendo viva a chama...